Sábado, 02 de Agosto

O Homicídio, o Guia e a Inspiração: a Jornada do Caso Márcia Barbosa e os Direitos da População Trans

Um panorama da desigualdade de gênero no Brasil e as possíveis soluções jurídicas para a problemática

Foto: Arquivo Pessoal

Cajazeiras é um município do Sertão Paraibano fundado em agosto de 1863, e que atualmente tem 61.776 habitantes - segundo dados da Prefeitura. O nome da cidade faz referência a uma fazenda fundada no século XVIII pelo pernambucano Luiz Gomes de Albuquerque, onde existiam várias árvores que produziam o fruto agridoce conhecido como "cajá".

Localizada a 468 quilômetros da capital João Pessoa, Cajazeiras, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui um PIB per capita de R$19.683,90, mas apenas 18% da população total está empregada no regime de carteira assinada. O fato leva parte da população a um êxodo em direção à cidades mais populosas, como a própria capital do estado, a fim de que encontrem melhores condições de vida.

Uma dessas migrantes foi a jovem Márcia Barbosa, que saiu de Cajazeiras com este mesmo propósito, mas acabou encontrando um fim trágico no episódio que marcou - de uma maneira triste - a luta por igualdade de gênero.

No dia 18 de junho de 1998, uma pessoa que passava pelo bairro Altiplano, localizado na área nobre em João Pessoa, viu um homem colocando o que parecia ser um corpo em um dos terrenos baldios da região. Houve uma denúncia feita à autoridade competente, que se deslocou até o local e, assim que recolheu o cadáver, constatou que se tratava de Márcia.

O laudo da autópsia constatou morte por asfixia. Além disso, a investigação afirmou que a vítima fez, na noite anterior ao crime, uma ligação a partir do telefone celular de Aércio Pereira, então deputado da Assembleia Legislativa da Paraíba. Na ligação, ela contou para conhecidos que estava naquele momento na companhia de Aércio, principal suspeito do homicídio.

A abertura do processo judicial contra o deputado só foi feita 5 após o assassinato, em 2003, depois que a sua imunidade parlamentar deixou de vigorar, pois era preciso que a Assembleia Legislativa levantasse a imunidade parlamentar, o que não foi feito. Aércio foi condenado em 2007, mas faleceu em fevereiro do ano seguinte - fato que não permitiu que ele cumprisse a pena.

A ENTRADA DA CORTE IDH

Em 2019, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) interveio no caso, sentenciando o Brasil a criar uma série de normas visando a revisão dos prejuízos causados pela demora na execução do processo. Segundo o relatório final divulgado em 2021, o Estado brasileiro foi responsável “pela violação dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial [...] da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação às obrigações de respeitar e garantir os direitos sem discriminação”.

A decisão foi um marco na luta por igualdade de gênero no Brasil e na América Latina como um todo, e não só direcionada para as mulheres cisgênero mas também para a população trans que sofre as mesmas mazelas. Segundo dados do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), os tribunais do país julgaram 10.991 processos de feminicídio, morte de mulheres por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, apenas no ano passado.

Em relação à população trans, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 122 pessoas foram assassinadas em 2024. No Nordeste houveram 48 homicídios, o que corresponde a 39,3% do total. No estado do Maranhão, duas pessoas da comunidade foram mortas. Esses números colocam o Brasil na 1ª posição do ranking de países que mais mata trans e travestis pelo 16º ano consecutivo, fato que acende um sinal de alerta para a eficácia das políticas públicas de proteção em vigor no Brasil.

A fim de diminuir a magnitude do problema, a Corte IDH obrigou que o Estado brasileiro implantasse uma série de ferramentas jurídicas para garantir que a discussão em torno da desigualdade de gênero não fosse posta de lado, especialmente no campo do direito.

Scarllet Abreu, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da Organização dos Advogados do Brasil no Maranhão, assinala que “o judiciário tem o papel de criar um ambiente que vai proteger essas pessoas vítimas de violência”. Pensando nisso - e na sentença da Corte IDH - o CNJ criou, em março de 2023, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, um guia que orienta juízes a tomarem decisões levando em conta o gênero das vítimas e a equidade de gênero.

Segundo Scarllet, a criação do protocolo é necessária para pensarmos “em um judiciário que venha, dentro da legislação, combater o crime, mas também efetivar políticas públicas para a garantia dos direitos”, assinala.

Pode-se pensar que um julgamento com perspectiva é um julgamento imparcial, mas o guia convenciona que em um mundo de desigualdades “julgar de maneira abstrata - alheia à forma como essas desigualdades operam em casos concretos - além de perpetuar assimetrias, não colabora para a aplicação de um direito emancipatório”. Ou seja, para combater um problema, é necessário que haja uma ação ativa.

AS ORIENTAÇÕES DO PROTOCOLO

Scarllet finaliza lembrando que é importante entender que “o judiciário tem um papel fundamental quando ele pega esses processos e analisa pela perspectiva individual", levando em conta as desigualdades que cercam certas populações.

O Protocolo para Julgamento como perspectiva de gênero traz uma série de perguntas a fim de instigar juizados a mitigar essas desigualdades. Entre elas estão:

1. É possível que desigualdades estruturais tenham algum papel relevante nessa controvérsia?

2. Existem circunstâncias especiais que devem ser observadas para que a justiça seja um espaço igualitário?

3. A parte envolvida precisa de proteção? Se sim, o que seria protetivo nesse caso?

4. A instrução processual está reproduzindo violências de gênero institucionais?

5. Em vista da resposta conferida à primeira questão, é necessário atribuir um peso diferente à palavra da vítima?

Ainda assim, mesmo com o instrumento robusto implantado pelo CNJ, a população trans continua vivendo em um país inseguro até mesmo para a sua própria sobrevivência.

A acadêmica de direito e mulher trans Zaíta Dias frisa que “a legislação brasileira ainda é pensada para o homem branco, cisgênero, hétero, de classe média ou alta, e a minha existência, enquanto pessoa trans, é constantemente colocada à margem desse modelo”, reivindicando ações mais concretas não só do direito, mas da população civil como um todo.

Outra crítica à legislação em vigor é que ela é feita sem levar em conta as opiniões das pessoas que serão representadas por ela. Zaíta alerta que a lei “só vai se tornar sólida quando for feita com a gente, e não sobre a gente”, e ainda comenta sobre as mudanças necessárias nos contextos. Segundo ela, “a transformação começa com representatividade real nas esferas de poder, nos parlamentos, nas universidades, nos conselhos e em todos os espaços de decisão”.

Apesar do cenário desanimador em relação à garantia de direitos às pessoas trans, a estudante e ativista frisa que o movimento de luta para um mundo melhor não pode enfraquecer, e muito pelo contrário, é preciso que ele resista e se expanda cada vez mais. Zaíta declara que “apesar de toda a violência, a comunidade trans é potente, criativa, revolucionária, pois criamos nossas próprias redes de cuidado, ocupamos espaços que disseram que não eram nossos, e seguimos em frente mesmo quando tudo nos diz para desistir”, finaliza.

Hudson Souza

Editor do O Jagunço, atualmente cursa Jornalismo na Universidade Federal do Maranhão. Sua escrita é voltada para devaneios existenciais, já que não pode-se pensar sobre o que não existe.